Dos 14 aos 18 anos, o que você estava fazendo? Talvez lembra de todas as brincadeiras, o convívio com os amigos, colegas da escola, as festas. Mas muitos santa-marienses dessa idade hoje em dia não terão lembranças boas no futuro. Isso porque eles não estão jogando bola, brincando na rua, muito menos indo ao colégio. Ao contrário. Entre 2021 e 2022, o número de adolescentes apreendidos por envolvimento em homicídios e tentativas de assassinato teve um aumento de 480% em Santa Maria. O número de apreensões passou de cinco em 2021 para 24 de janeiro até outubro deste ano.
A maioria das apreensões foi feita pela Delegacia de Polícia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DPHPP) da Polícia Civil, que resultou na internação de 17 adolescentes entre 14 e 17 anos no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case), na BR-158. O delegado Gabriel Zanella, titular da delegacia, afirma que os adolescentes estão sendo usados pelas facções criminosas para cometerem as execuções.
– Muitos desses jovens estão envolvidos com facções atuantes no tráfico de drogas. Não raro, são utilizados por elas como executores, pois o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê sanções muito mais brandas do que as que o Código Penal impõe aos adultos. Neste contexto, o crime organizado os usa como “mão de obra barata e facilmente substituível” – afirma.
Segundo Zanella, muitos desses adolescentes possuem família desestruturada, omissa e envolvida diretamente com a criminalidade. Eles não frequentam escola, são viciados em drogas e vislumbram no mundo do crime uma vida atrativa, marcada por aventuras, riscos, ostentação de poder e de bens materiais. Há casos de infratores de 14 e 15 anos que possuem diversos e graves antecedentes policiais: homicídios consumados e tentados, roubos e até latrocínio.
Neste ano, cinco adolescentes foram apreendidos pela Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) após a investigação de um latrocínio (roubo com morte). Para o delegado André Diefenbach, que coordenou a investigação da morte de Leonardo Almeida, 22 anos, em um assalto na Rua Coronel Niederauer, em agosto, esses cinco menores estavam envolvidos no crime.
– A questão do envolvimento de adolescentes no crime de latrocínio chama atenção, tanto pela menoridade de vários dos envolvidos quanto pelo envolvimento de menina no ato infracional. O fato foi gravíssimo, de violência extrema, com a finalidade de roubar um telefone celular. Quando prestaram depoimento, não percebi sentimento de arrependimento ou remorso. A que se atribuir a participação de adolescentes nesse crime? Acredito que sejam um conjunto de fatores, principalmente por parecer que esses jovens foram criados sem limites, andando pela rua até altas horas, se reunindo em esquinas, sem uma necessária vigilância e educação adequadas que lhes impusesse limites e explicasse a diferença entre certo e errado – analisa Diefenbach.
Reincidência
Outro caso recente aconteceu no feriado de 12 de outubro, quando um adolescente de 17 anos foi apreendido por policiais da Brigada Militar suspeito de executar um casal no local conhecido como Beco da Babilônia. Dois dias antes, esse mesmo adolescente já havia sido flagrado com outra arma próximo ao local do crime. Ele foi apreendido, levado à Delegacia de Polícia de Pronto-Atendimento (DPPA), ouvido e liberado.
O major Rogério Glanzel Alves, atual comandante do 1º Regimento de Polícia Montada (1º RPMon), revela que os flagrantes envolvendo adolescentes são diários no trabalho da Brigada:
– Existe a legislação e os nossos policiais militares aplicam a lei, independentemente de quantas vezes for necessário. Constatamos a reincidência de vários deles (adolescentes), bastando verificar seus antecedentes de atos infracionais. A resposta da Brigada Militar se dá na proporção de suas ações, na medida em que infringem a lei e se colocam na condição de infratores.
Para o major Rogério, cabe aos legisladores verificarem se a lei vigente tem a efetividade e está de acordo com o que a sociedade espera, quando trata do envolvimento de menores com a criminalidade.
Nem sempre a internação é eficaz, diz a delegada da Criança e do Adolescente
A delegada Luiza Sousa, titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), acredita que o aumento do número de adolescentes no crime tem motivação em diferentes fatores, entre eles o poder, as drogas, o dinheiro e a desestruturação familiar. A delegada explica também sobre os fatores que levam ou não à apreensão e à internação dos adolescentes.
– Somos pautados pela lei. O Estatuto da Criança e do Adolescente só prevê que um adolescente será internado em casos de atos infracionais equiparados a crimes violentos ou com grave ameaça à pessoa. Nesse caso, será representado ao Judiciário, que decide se interna ou não o adolescente. Um porte de arma, por exemplo, não se enquadra nos requisitos que ensejam internação, porque não há violência ou grave ameaça à pessoa.
Luiza destaca que é reconhecido cientificamente que o adolescente é um indivíduo ainda imaturo, que está em formação de valores e suscetível aos exemplos. Ele tem forte desejo de se firmar e se destacar perante outros adolescentes. Mas, por outro lado, pode ser ressocializado mais facilmente que um adulto. Porém, Luiza tem ressalvas:
– Por isso sempre se deve ponderar qual a mais adequada medida socioeducativa (nome da responsabilização imposta aos adolescentes que cometem atos infracionais). Muitas vezes, uma internação não é eficaz e traz mais prejuízos aos mesmos, como internar um adolescente que cometeu apenas um ato infracional, mesmo que grave, no meio de adolescentes que já cometeram diversos crimes violentos e membros de facções criminosas.
Justiça
O Estatuto da Criança e Adolescente prevê as seguintes medidas socioeducativas: advertência, reparação do dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação em estabelecimento educacional. A Vara da Infância e Juventude analisa caso a caso e aplica a medida mais adequada àquela situação.
A juíza da Vara da Infância e da Juventude, Gabriela Dantas Bobsin, destaca que Santa Maria faz parte do programa RS Seguro que analisa dados da criminalidade e indica os locais onde as ações devem ser intensificadas. Ela diz ainda que a vulnerabilidade socioeconômica da população e o acesso precário aos serviços públicos colaboram para que os jovens e adolescentes encontrem oportunidades no mundo do crime.
– De modo geral, houve um incremento no número de fatos violentos na comunidade, tanto no público adulto, quanto no adolescente. Porque as coisas não acontecem dissociadas . Aumentando a criminalidade, vai afetar tanto o público adulto quanto o adolescente – diz.
As apreensões
Adolescentes suspeitos de homicídios apreendidos em Santa Maria nos últimos dois anos:
Polícia Civil
2021 – 5
2022 – 23
Brigada Militar
2021 – 0
2022 – 1
Total de apreensões
2021 – 5
2022* – 24
Aumento – 480%
*Até 31 de outubro